ARTIGO
Reforma agrária e assentamentos em São Paulo: mudanças no espaço rural
SONIA MARIA PESSOA PEREIRA BERGAMASCO
I - Reforma agrária: as diferentes significações
Tudo
que se lê e se escuta hoje na mídia nacional sobre a questão
agrária, está associado à violência, à
baderna, à confusão e ao conflito. Por outro lado, esta
mesma imprensa mostra a pujança de nossa agricultura empresarial,
capaz de aquecer um mercado industrial de máquinas agrícolas,
as mais sofisticadas, além de colaborar sobremaneira com o equilíbrio
do balanço de pagamentos do País. É em função
deste contexto, que muitos estudiosos justificam a não-existência
de uma questão agrária brasileira. A nossa agricultura
vem dando excelentes respostas às demandas econômicas e
políticas, internas e externas.
Mas, felizmente, há aqueles que apontam o lado perverso deste
processo de modernização que foi capaz de expulsar, durante
seu apogeu, milhares de famílias de agricultores que vieram engrossar
as fileiras de desempregados no meio urbano. A enorme desigualdade gerada
no campo agrário brasileiro resultou em uma reação
salutar: a organização e a luta dos trabalhadores rurais,
alijados deste processo de modernização, em busca de terra
para viver e produzir. A partir daí os conflitos se estabelecem
e o Estado, timidamente, é obrigado a intervir. E é desta
forma que os últimos governos implementaram diversas políticas
de assentamentos rurais, erroneamente caracterizadas como processo de
reforma agrária brasileira.
O entendimento da reforma agrária brasileira apresentou, no decorrer
de sua história, diferentes significações; reforma
agrária produtiva: nos anos 60, nos quais o Estatuto da Terra
(Lei 4504 de 30/11/1964) aparecia para oferecer as condições
jurídicas que viabilizariam o desencadeamento do processo; reforma
agrária social: nos anos 80, com o restabelecimento do regime
democrático, a reforma agrária não mais se vinculava
exclusivamente ao desenvolvimento técnico-econômico da
agricultura, nem era mais apresentada como pré-requisito para
tal. A dramática exclusão social, o aumento da fome e
do desemprego, e mesmo o caráter parcial e relativo da modernização,
que não desconcentrou a propriedade fundiária, mostravam
que a reforma agrária permanecia como uma importante alternativa
para o Brasil, não apenas para o aperfeiçoamento tecnológico
mas, sobretudo, a partir de uma questão social; reforma agrária
de mercado: a democratização iniciada nos anos 80 possibilitou
a organização de novos movimentos sociais, mais afinados
com uma base popular que reivindicava a aplicação da legislação
agrária, mas o Estado foi, paulatinamente, retirando os instrumentos
legais que permitiriam o atendimento destas demandas. Em meados dos
anos 90, o conteúdo do Estatuto da Terra apresentava-se esvaziado
e passava a expressar uma nova combinação entre legislação
agrária e política. Entretanto, com a eleição
de FHC em 94, para além das promessas eleitorais e de seu cumprimento
ou não, vale notar a conformação de um novo ambiente
político para a segunda metade dos anos 90, época em que
o MST passou a contar com novas e mais consistentes articulações
com a sociedade civil urbana. Desta forma, pode-se dizer que após
os massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás, a luta pela
Reforma Agrária adquiriu um novo significado político
na sociedade brasileira.
A partir daí o Estado passou a manifestar grande preocupação
com a questão agrária, e veio a atuar de forma mais incisiva
através de desapropriações de áreas improdutivas
e implementação de assentamentos rurais, o que implicava
em investimentos governamentais para o pagamento de áreas desapropriadas,
criação de infra-estrutura social, e financiamento da
produção agropecuária das famílias assentadas
contrariando as diretrizes oficiais e acordos internacionais
de contenção de déficit fiscal e de redução
da participação direta e indireta do Estado em atividades
econômicas. Junto a isso, ampliaram-se as ações
de regularização fundiária de áreas em disputa,
acoplando, com finalidade publicitária, estas medidas ao elenco
de ações de Reforma Agrária.
Os princípios gerais de redução do aparato burocrático,
descentralização administrativa, separação
entre a formulação e a execução de políticas
públicas passaram a nortear as ações federais em
relação à Reforma Agrária. Registraram-se
reformulações na legislação vigente, algumas
de grande importância como o “rito sumário”
mas o eixo principal da reformulação institucional, neste
período, foi o de fundir as políticas de Reforma Agrária
(Procera) com as políticas de fortalecimento da Agricultura Familiar
(Pronaf), o que foi chamado de “A pronafização
do Procera”. Assim, o governo federal suprimiu os mecanismos
operacionais do Procera (Programa de Crédito para a Reforma Agrária)
sem que o novo programa Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar) tivesse uma institucionalização
capaz de substituí-lo adequadamente. Ao lado da promessa de garantir
a continuidade da desapropriação de latifúndios
improdutivos, como principal instrumento para obtenção
de terras, o governo cria um sistema de crédito fundiário
através do projeto Cédula da Terra, apoiado financeiramente
pelo Banco Mundial, que foi enfaticamente criticado por diversas entidades
e por diferentes momentos.
Registra-se então mais um desmonte nas políticas de desenvolvimento
dos assentados, o que certamente resultou em novas frentes de confrontos
entre o Estado e os movimentos sociais e sindicais dos trabalhadores
rurais, marcas deste início de século.
II Reforma agrária: “fora de
moda”
É voz corrente que o Brasil perdeu o bonde da história.
Na década de 60 ainda era “economicamente correto”
falar em reforma agrária. Hoje isto não tem mais sentido.
Como já foi dito, nossa agricultura, a partir de um intenso processo
de “modernização” de suas relações
de produção, já atingiu os patamares necessários
ao crescimento econômico. É importante remarcar que os
recursos também imensos e de custo baixo para este eficiente
resultado, foram e têm sido bancados pelo estado brasileiro. Foi
o Estado que assegurou as condições para o sucesso deste
empreendimento. Em contrapartida, as desigualdades se estabeleceram.
E é nos trilhos destas desigualdades que afirmamos a validade
e a urgência de uma melhor distribuição dos recursos
no espaço agrário brasileiro, através da reforma
agrária.
Importa ainda ressaltar que a despeito de constar de seus programas,
nenhum governo no Brasil desencadeou processos de reforma agrária,
via implementação de assentamentos rurais, por si só:
esses processos resultaram, na maioria das vezes, da pressão
e da presença dos trabalhadores rurais através de seus
movimentos e de suas representações. Além disto,
os programas que se estabeleceram apresentam uma maior incidência
na região nordeste e nas regiões de fronteira (norte e
centro-oeste) indicando um previlegiamento regional.
Mas, com todos estes entraves, pesquisas têm mostrado a importância
e os impactos dos assentamentos rurais, não enquanto números,
pois estes não são impactantes no contexto mais geral
de nossa sociedade, mas enquanto efeitos em seu entorno, nos municípios
e nas regiões onde se inserem, acrescidos dos resultados positivos
sobre os próprios indivíduos no resgate de sua cidadania
e na sua inclusão nos processos sociais e produtivos.
III. Os impactos dos assentamentos rurais no campo
paulista
A questão agrária no estado de São Paulo adquire
contornos extremamente importantes na luta política pela reforma
agrária. Primeiramente, por reafirmar a idéia de que a
reforma agrária precisa ser implementada mesmo onde o capitalismo
agrário desenvolveu-se com maior força; mas também
por que, além disto, ainda se dispõe de grandes extensões
de terras improdutivas ou aproveitadas de forma insuficiente, de acordo
com os critérios legais vigentes. Tomando-se, por exemplo, o
Pontal do Paranapanema registra-se uma área, de aproximadamente
um milhão de hectares, ocupada, principalmente, por grandes fazendeiros,
cujos títulos de propriedade são, em boa parte, irregulares,
falsificados, ou inexistentes. Até o final da década passada
pode-se encontrar um total de 9,6 mil famílias assentadas no
estado de São Paulo, distribuídos em 141 núcleos
de assentamentos, 60% das quais estão no Pontal do Paranapanema
(4.683 famílias).
A pesquisa realizada através do convênio FINEP-UFRRJ-CPDA,
nos traz importantes elementos de reflexão sobre os assentamentos
em São Paulo. Para realização da pesquisa de campo
foram selecionados os seguintes projetos de assentamentos: Sumaré
I e II (em Sumaré), Fazenda Reunidas (Promissão) e Bela
Vista do Chibarro (Araraquara), os mais antigos, e os assentamentos
Santa Clara, São Bento e Estrela D’alva, mais novos, localizados
na região do Pontal do Paranapanema.
Os resultados desta pesquisa mostram uma nova realidade no espaço
agrário paulista. Impactos internos como: a melhoria na renda
das famílias, a criação de empregos, a educação
dos jovens e adultos, as condições de habitação,
de saúde, e de alimentação, o poder aquisitivo,
além da participação social, cultural e de lazer
fazem parte de um elenco de aspectos detectados como mudanças
altamente relevantes dentro dos assentamentos. Tomando-se a questão
da renda para exemplificar tem-se um valor mensal líquido por
família igual a R$ 320,12, na média do estado, em termos
de renda monetária. Esta renda é composta em sua maioria
pelo trabalho dentro do lote em atividades agrícolas. É
importante ressaltar além da renda, a possibilidade que tem o
assentado de contar com o auto-consumo. Por outro lado, registrou-se
a geração de quase quatro empregos por família
assentada.
Externamente são importantes os impactos, como a revitalização
do meio rural através das dinâmicas populacionais, como
pode ser visto, na região do Pontal do Paranapanema. Se tomarmos,
por exemplo, o município de Mirante do Paranapanema onde se nota
um aumento marcante na população rural, assim como em
outros municípios (Caiuá, Presidente Venceslau, Sandovalina)
verifica-se uma alteração na paisagem e no padrão
de distribuição da população nos espaços
rurais onde se estabeleceram assentamentos. Aliado a estas alterações
pode se verificar, através do cálculo dos Índices
de Gini1, um processo de desconcentração na distribuição
da terra em alguns dos municípios pesquisados, cuja explicação
se constitui na implantação de assentamentos. Mirante
do Paranapanema apresentou queda substancial no índice de Gini,
entre 1985 e 1995/96, passando de 0,801 para 0,755. Da mesma forma,
no município de Promissão o índice cai de 0,769
para 0,685. Isto para ficar com alguns exemplos.
Os assentamentos, a despeito das características desfavoráveis
das políticas governamentais vêm contribuindo para reverter,
em alguns municípios, a tendência a um decréscimo
vertiginoso da população e do dinamismo econômico
de centenas de pequenos municípios. Por outro lado, observa-se
uma clara melhoria das condições de vida e de trabalho
entre a população que foi assentada.